sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"As escolas encaram o bullying" especial da Revista Veja sobre o assunto

PREVENÇÃO NAS ESCOLAS

“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu.
Coragem para a luta.”

O trecho acima, que abre o romance O Ateneu, lançado em 1888 por Raul Pompéia, permanece um clássico escolar. Para muitos, ir ao colégio demanda valentia. Isso se deve a um tipo de violência que é antiga, mas vem sendo popularizada sob o conceito de bullying – palavra inglesa que significa intimidar e atormentar e vem preocupando cada vez mais as escolas brasileiras. Embora não haja números oficiais, a prática de atazanar colegas – muitas vezes confundida por pais e educadores com uma simples brincadeira – já envolve 45% dos estudantes brasileiros, segundo estimativa do Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar (Cemeobes), organização com sede em Brasília. O índice está acima da média mundial, que variaria entre 6% e 40%.

Contra o bullying, as escolas investem em estratégias de prevenção, com solução pontual dos conflitos. Conforme a gravidade, algumas instituições particulares lançam mão de medidas punitivas como advertência e suspensão. A prevenção se dá por meio de palestras, dinâmicas em sala de aula e orientação oral ou escrita sobre o uso saudável dos meios digitais – já que parte do bullying ocorre on-line.

Privadas – Apesar da estimativa alarmante, as escolas particulares ouvidas pela reportagem de VEJA.com frisaram que são raros os casos de bullying dentro de seus muros. O combate ao problema é feito pelos professores ou por palestrantes convidados. “Discutimos o assunto com os estudantes num curso específico e endereçamos cartilhas sobre cyberbullying aos pais”, conta Cristiana Assumpção, coordenadora de tecnologia na educação do colégio Bandeirantes, de São Paulo. “A ideia é que o conteúdo seja reforçado em casa.”

A solução de conflitos tem início com uma tentativa de diálogo. “Quem nos avisa do bullying, em geral, é a vítima. Se o problema ainda não tiver tomado um grande vulto, conseguimos trabalhar de forma discreta, chamando os envolvidos para uma conversa. Se preciso, convocamos as famílias”, diz Fábio Aidar, vice-diretor-geral do colégio Santa Cruz. “Quando o caso toma vulto, chegamos a interromper aulas para discutir a questão com os alunos.”

A atuação do Colégio Chromos, de Belo Horizonte, vai no mesmo sentido. “Quando identificamos algum problema, conversamos com o aluno e imediatamente chamamos a família, que tem de ser conscientizada sobre o sofrimento enfrentado pelo filho, capaz de influir em seu desempenho escolar e nas suas relações com outros alunos”, diz Léa Maria Cunha, psicóloga do Chromos. “Também recomendamos à família que conduza o filho para uma terapia e acompanhe sempre sua rotina, saiba quem são seus amigos, converse com ele. O suporte dos pais é fundamental”.

O colégio Graphein, instituição de São Paulo que recebe alunos com histórico de dificuldades de adaptação, investe na linha relacional – ou seja, na interação entre estudante e escola. “A melhor forma de trabalho é o acolhimento com vínculo, é fazer o adolescente se sentir ouvido. O vínculo cria confiança e desmonta as defesas dele, melhorando a sua reflexão”, afirma Nivea Fabricio, diretora do colégio. “Nossos alunos, vítimas ou agressores, chegam fragilizados. É preciso resgatar a auto-estima de todos, porque, à medida que alguém se fortalece, deixa de temer o diferente e de sentir necessidade de se auto-afirmar.” Para Nivea, é preciso envolver também os pais nesse esforço.

Estado – Nas escolas públicas, a prevenção é dirigida aos professores, vistos como multiplicadores do saber. A especialista Cleo Fante, ex-presidente do Cemeobes, comandou um curso de capacitação para as 91 diretorias de ensino da rede estadual paulista, no início deste ano. A ideia era instruí-los a evitar a ocorrência de bullying nas escolas sob sua responsabilidade.

No Paraná, o tema faz parte de um curso de formação continuada para docentes, em que se discute o enfrentamento à violência. “O assunto reaparece em oficinas, grupos de estudos e materiais impressos”, diz Sandro Savoia, coordenador dos desafios educacionais contemporâneos da Secretaria de Educação do estado. O combate à violência é reforçado pela Patrulha Escolar, um grupamento da Polícia Militar que recebe formação extra para acompanhar o dia-a-dia das escolas, na tentativa de evitar ocorrências.

Para Quézia Bombonatto, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), é acertado o movimento preventivo das escolas, principalmente quando reforçado por ações de reabilitação de agressores e vítimas. “A reabilitação tem de olhar o indivíduo como um todo, entender seu contexto e contemplar sua família. Não adianta apenas punir.”


O DRAMA DOS NÚMEROS

Apesar de os profissionais de educação reconhecerem que o bullying é uma prática crescente, o fenômeno ainda não recebeu atenção especial das autoridades. Nem o Ministério nem as secretarias de Educação de cinco estados da federação consultados pela reportagem têm números a respeito – caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Ceará. “Falta investimento em pesquisa”, queixa-se Quézia Bombonatto, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp).

“A gente não tem registro de casos de violência, seja de professor contra aluno, aluno contra professor ou aluno contra aluno”, diz Rejane Quirino, articuladora de projeto interinstitucional da Secretaria de Educação do Ceará. “Mas isso não significa que não haja ocorrências, especialmente em escolas de áreas de risco, onde há muitas famílias desestruturadas e os índices de violência são altos”, complementa.

Como as demais secretarias ouvidas pela reportagem, a cearense não possui uma estratégia específica contra o bullying. A questão é tratada a partir de ações de combate à violência em geral ou pontualmente, em atividades expositivas e debates.

Em São Paulo, os especialistas apostam em uma estratégia para enfrentar o problema. “Há anos, lutamos para ter um psicopedagogo em cada escola estadual paulista, o que representaria um apoio importante para aluno e professor, e que poderia ajudar a prevenir o bullying”, diz Quézia. Ela se refere ao projeto de lei nº 128/2000, do ex-deputado estadual Claury Alves da Silva. Aprovado em 2001 pela Assembléia Legislativa, o projeto ainda não saiu do papel. “Em algumas escolas particulares, a situação pode ser melhor, mas, nas públicas, o professor está abandonado”, afirma.

A presença do psicopedagogo é bem vista também pelo vereador Gabriel Chalita, ex-secretário de educação paulista. Ele é autor de projeto para coibir o bullying nas escolas públicas da capital, que prevê, entre outros pontos, a formação de um cadastro em cada instituição de ensino municipal para o registro de ocorrências do fenômeno. “Assim, teríamos um perfil do bullying”, explica. O projeto passou com sucesso pela primeira votação na Câmara de Vereadores e agora precisa vencer uma segunda votação e receber a sanção do prefeito Gilberto Kassab.


A VISÃO DA ESPECIALISTA


Quando feito de apelidos e piadinhas, o bullying pode até parecer uma brincadeira. Mas suas conseqüências não são. Segundo a pesquisadora Cleo Fante, ex-presidente do Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar (Cemeobes), se mal resolvido, o bullying pode deixar marcas para o resto da vida – tanto nos que o praticam quanto naqueles que dele são vítimas. “É um equívoco dizer que o bullying é uma brincadeira e que os alunos o superam sozinhos. Estamos falando de uma forma de violência deliberada”, diz. Mergulhada há cerca de dez anos no tema, Cleo é co-autora do livro Bullying: Perguntas e Respostas e autora de Fenômeno Bullying: Como Prevenir a Violência nas Escolas e Educar para a Paz, recém-adotado pela Secretaria da Educação de São Paulo como manual para a rede estadual paulista. Confira a seguir a entrevista com a especialista.

O que caracteriza o bullying?
Para que uma ação seja considerada bullying, ela precisa ter certas características: ser repetida contra uma mesma pessoa, apresentar um desequilíbrio de poder que dificulte a defesa da vítima, não possuir razão aparente e contar com atitudes deliberadas e que tragam prejuízo – material, físico, emocional ou de aprendizado. Há estudos sobre bullying entre alunos e professores, porém, o mais conhecido é entre alunos, apenas.

Na sua opinião, as escolas sabem lidar com a questão?
A maneira de lidar com a questão varia muito. Independe da localização e dos recursos da escola. Depende, isso sim, dos valores que propaga. De modo geral, ainda há muito a melhorar, mas pelo menos a percepção social do bullying melhorou nos últimos anos.

O tipo e a localização da escola influem na incidência do fenômeno?
Nas pesquisas que realizei, não vi muita diferença entre escolas pobres e ricas, centro e periferia. Não posso generalizar, dizendo que as escolas públicas têm mais bullying que as particulares. O que se sabe é que as escolas que trabalham valores humanos, que colocam limites, que impõem autoridade aos estudantes, sofrem menos.

Há algum canal de denúncia oficial no país?
Sim, a partir de 2008, o Disque 100 [Disque Denúncia Nacionalde Abuso e Exploração Sexualcontra Crianças e Adolescentes, criado em 1997 pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Proteção à Criança e ao Adolescente (Abrapia) e executado desde 2003 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos] passou a acolher denúncias de bullying. Foi uma conquista nossa, dos profissionais que desenvolvem um trabalho na área há quase dez anos. Desse trabalho, também são fruto os diversos projetos de lei espalhados pelo país que preveem que as escolas passem a preparar seus funcionários – não apenas professores – para identificar o bullying e para lidar com ele.

O que leva uma criança ou adolescente a praticar o bullying?
Nos estudos com que me envolvi, identificou-se que 80% dos agressores eram vítimas de violência em casa ou na própria escola. Eles reproduziam essa violência. Outras fontes apontadas pelas pesquisas são a permissividade e a falta de imposição de limites para crianças e adolescentes, a ausência de afeto e a influência da mídia, videogames e jogos virtuais. É um equívoco dizerem que bullying é coisa da idade, que com o tempo passa, que é brincadeira ou que os alunos superam sozinhos. Estamos falando de uma forma de violência que é deliberada, intencional, que é tramada, planejada. O bullying não pode ser explicado pela insegurança da adolescência.

Que tipo de trauma o bullying pode gerar às vítimas?
A curto e longo prazo, o bullying interfere na auto-estima, na concentração, na motivação para os estudos, no rendimento escolar e nos males psicossomáticos (diarréia, febre, vômito, dor de estômago e de cabeça) da vítima. A longo prazo, a vítima pode desenvolver transtornos de ansiedade e de alimentação (bulimia, anorexia, bruxismo, alergias, depressão e ideias suicidas). Se não houver intervenção, pode haver efeitos para o resto da vida. A vítima pode ser sempre insegura. Alguns têm resiliência, o poder de resistir e superar situações difíceis, mas outros penam.

E os agressores?
O agressor sofre, de imediato, um distanciamento dos objetivos escolares. Ele passa a ficar o tempo todo planejando o que fazer e se esforçando para manter o jogo de poder com a vítima. Aliás, ele pode ter várias vítimas, isso é o mais comum. O agressor, então, pode sofrer queda no rendimento escolar e até evasão – como ele deixa de aprender, pode ser reprovado e perder a motivação para estudar. A longo prazo, ele pode cair na delinquência e no uso ou tráfico de drogas. Além disso, pode praticar o bullying em outros ambientes, como o trabalho e a família, tendo problemas nas relações profissionais e sociais e até nos relacionamentos afetivos e amorosos – prejudicados pela questão do poder, que tenderá a acompanhar o agressor.

É possível que o bullying tenha algum efeito positivo na vida adulta?
Imagine! Quanto mais cedo uma criança passa por situações de bullying, pior para ela.


O PAPEL DOS PAIS


No ar na novela Caminho das Índias, da Rede Globo, como o malandro César –empresário que, além de não punir o filho Zeca, um típico agressor de bullying, chega a incentivá-lo –, o ator Antonio Calloni vive o seu oposto. Em casa, ele conta ser um pai preocupado com o caráter do filho Pedro, 14, a quem impõe limites, mas também oferece atenção. O rapaz, garante o ator, nunca teve problemas na escola. “Um ‘não’ também é um sinal de amor, e isso o César não entende, porque tem uma afetividade deformada: ele admira as atitudes do filho como se fossem provas de virilidade. Ele o educa para ser macho, não para ser homem”, diz Calloni. “É preciso dar limites, o filho tem que aprender a lidar com frustrações.” A fala de Calloni vai ao encontro da opinião de diversos especialistas em educação. De modo geral, os estudiosos diagnosticam a falta de limites como uma das causas do mau comportamento atual de crianças e adolescentes, ao lado de uma mudança social profunda que teria desequilibrado o esquema familiar. “No começo do século XX, as relações eram diferentes já dentro da família, os papéis eram muito bem definidos. O pai comandava os filhos com o olhar, não precisava falar”, diz a psicopedagoga Edimara de Lima, diretora pedagógica da Prima-Escola Montessori de São Paulo. “Hoje, disciplina é uma palavra fora de moda, por conta da ditadura da não-frustração que vivemos: os pais querem que seus filhos sejam felizes o tempo todo, como se isso fosse possível.”

Como resultado, afirma Edimara, a criança se torna um adulto despreparado para a vida, que é feita de conquistas e também de decepções – ou um adolescente fora de hora. Paula Cantos, coordenadora e psicóloga do colégio Graphein, concorda. “A infância e a adolescência são fases em que cada um constrói o seu ‘eu’, o seu lugar no mundo, e para isso é preciso o suporte dos pais e da escola: se esse suporte balança, o indivíduo se fragiliza e não adquire habilidade para lidar com o mundo.”

Olhos e ouvidos – Além de transmitir regras aos filhos, os pais devem estar sempre alertas para perceber sinais de envolvimento com bullying. Essa percepção pode se dar em diálogos sobre o dia-a-dia escolar e na leitura de possíveis indícios que os filhos tragam consigo ao chegar em casa (confira os sinais mais comuns). Também cabe aos pais acompanhar o comportamento dos filhos e, uma vez sentindo necessidade, encaminhá-los a um psicólogo ou a uma assistência psicopedagógica.

Caso identifiquem no filho uma vítima de bullying, diz a pesquisadora Cleo Fante no livro Fenômeno Bullying: Como Prevenir a Violência nas Escolas e Educar para a Paz, os pais devem procurar a direção do colégio – e não o agressor ou sua família. O revide, aliás, nunca deve ser incentivado. Se a escola não der uma resposta adequada, pode-se partir para o Conselho Tutelar. Agressões praticadas por maiores de 12 anos podem ser levadas à Justiça e resultar em advertência e serviço comunitário para o réu (se adolescente) ou pena de seis meses a dois anos de prisão (se adulto).


A VIGILÂNCIA DOS PAIS
*COMO IDENTIFICAR SE SEU FILHO É UM POSSÍVEL PERFIL DE VÍTIMA OU AGRESSOR



CYBERBULLYING PREOCUPA

A variante de bullying que tem dado mais trabalho para escolas, pais e estudantes é o virtual, também chamado de cyberbullying. “Na faixa dos 13, 14 anos, a mais crítica de todas, é frequente o desrespeito pela internet. Os alunos criam comunidades no Orkut, entram de forma anônima ou não e falam mal de outros”, diz Fábio Aidar, vice-diretor-geral do colégio do Santa Cruz, em São Paulo. “Para prevenir, fazemos um trabalho verbal, orientando os alunos para o bom uso da internet e lembrando a importância do respeito ao próximo.”

De modo geral, os colégios particulares vetam o uso de celular em sala de aula - o que evita que se filme alguma cena constrangedora para depois jogá-la na web, um tipo possível de cyberbulling. Em algumas instituições, ele é liberado no recreio e nos intervalos, ou quando há uma ligação importante a ser feita pelo aluno (desde que ele avise antes a direção da escola). Em algumas redes estaduais, como na do Paraná, há orientação para as escolas proíbam o celular, mas cabe a cada uma vetar concretamente ou não.

Sufocar completamente o cyberbullying é, porém, uma missão complexa, porque muitas das agressões virtuais são feitas pelos alunos a partir de suas casas. “Hoje, a nossa preocupação maior é com o que os alunos fazem fora da escola: as festas, as drogas e a internet”, reconhece o psicólogo Cristiano Braune Wiik, coordenador pedagógico do 1º ano do ensino médio do São Luís. Aqui, mais uma vez, as escolas centram fogo na prevenção. “Nós monitoramos a navegação no colégio e orientamos as família a fazê-lo em casa, ficando ao lado do aluno e verificando seus hábitos on-line”, afirma Nívea Fabrício, do Graphein, chamando atenção para o outro lado do combate ao bullying: a ação dos pais.

Xingamentos eletrônicos – Frederico, de 12 anos, identificado aqui por nome fictício, chegou a deixar três escolas por envolvimento em brigas. Em suas próprias palavras, estava sempre disposto a entrar em combate. “Quando me xingavam, eu já partia para a briga”, lembra. Era um agressor, mas também vítima do bullying – visto como vilão, acabou sendo perseguido e se tornando o bode expiatório da turma.

Ao lado de colegas de um de seus colégios anteriores, participou de uma comunidade na rede social Orkut que era um exemplo claro de bullying virtual: “Eu odeio a Gisela” – outro nome fictício. A página, que chegou a reunir 120 participantes, propunha uma enquete em que os visitantes podiam escolher uma maneira de ofender Gisela. “Burra”, “escrota” e “tonta” eram os adjetivos mais leves.

Transferido para o colégio Graphein, especializado em estudantes com dificuldades de adaptação, Frederico começou a deixar para trás as práticas. Mais calmo e sociável, é considerado um jovem em “reabilitação”.


Fonte: http://veja.abril.com.br/especiais_online/bullying/index.shtml

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